quinta-feira, 29 de setembro de 2016

28 dias de L.F.S, 34 - pós estupro - Primeiro dia


No Brasil a cada 11 minutos uma mulher sofre estupro. Isto é, aqueles que são notificados. Ainda assim é assustador pensar sobre isso.

Acordou e a boca estava amarga, mal podia abrir os olhos. Precisava trabalhar. Lembrou-se do dia anterior e deixou-se afundar no colchão. Virou para o lado. Lá estavam os três frascos de medicação. Seriam seus companheiros nos próximos 28 dias. Precisava levantar, mas o corpo só queria permanecer ali, embaixo das cobertas, no quarto ermo, encolhida e quieta. Não bastavam as dores no baixo ventre, tinha o metálico sabor dos antibióticos da noite anterior na boca. Mal sabia... Podia piorar.

Arrastou o corpo até o banheiro, dor ao urinar ainda incomodava, menos mas persistia mesmo depois de  toda aquela medicação agressiva. Diarréia. Faltava energia no corpo, estava cheia de vergonha e vontade de sumir. Não era possível, tinha de trabalhar. Entrou embaixo do chuveiro tentando tirar da pele aquele cheiro desconhecido que a incomodava desde o dia anterior. Nada o fazia sumir.

Sentia-se enjoada, mas precisava comer para tomar o coquetel anti-HIV. Não era justo pensar nesse vírus, não com ela. Sempre tão cuidadosa... Conseguiu tomar um chá com torradas, o enjoo melhorou com a refeição. Encarou o primeiro dos próximos 27 dias com coragem. Essa doença não ia pegá-la por nada. Separou cuidadosamente as duas pílulas e a cápsula bicolor, fixou o olhar por um instante, tomou as três de uma única vez. E partiu.

Chegou ao trabalho atrasada. Não sabia o que dizer. Esteve no posto de saúde, sim, esteve. Só o colega que a encontrou no piso da sala de aula quase catatônica sabia do ocorrido. A coordenadora não tinha idéia, ninguém tinha idéia do que passara na escola no dia anterior. Sorte que hoje não tinha sala de aula, não saberia encarar os alunos. Mal podia explicar o que a levou ao posto de saúde todo o dia anterior. Inventou uma infecção qualquer. Sentou-se em silêncio. Tudo parecia em câmera lenta. Ela estava em slow motion. Procurou fixar-se no trabalho, três pacotes de provas para corrigir. Chegou a pensar em fazer o trabalho em casa. Não sabia o que era pior estar ali em meio a todos os colegas ou se estar sozinha no seu quarto pequeno, em profundo silêncio. Tinha vontade de desaparecer.

Convidou Marcos para almoçar, cuidando para que fossem a sós. Precisava falar sobre tudo, não podia partilhar com qualquer outra pessoa o peso daquilo que ela mal compreendia. Foram juntos, não tinha fome. Tinha enjoo. Forçou-se a comer um pouco. Menos da metade do que era seu habitual. O gosto amargo sumiu. Por um instante acreditou que estava bem. Até levantar-se da mesa para pagar a refeição e perceber que o restaurante girava.

O medo do estupro assola a todas nós. Andamos nas ruas, tomamos o coletivo, entramos no metrô, vamos a festas, usamos taxi, sempre com medo. Em todos os lugares o perigo pode estar nos espreitando. Nunca imaginei que fosse acontecer no meu local de trabalho, no sagrado espaço da sala de aula. Ainda parecia um pesadelo do qual não acordava.

Caminhei ligeira de volta à escola, enquanto Marcos ia buscar minhas coisas na sala dos professores Direto para o banheiro. Sentia as vísceras se remoendo. Vômito, vômito, vômito. Três jatos intervalados. Todo o almoço boiando no vaso sanitário, no chão, nas paredes. Todos os dias seriam assim? Os olhos transbordavam pela força dos espasmos.

Lavou a boca. Olhou-se no espelho, estava pálida, olhos fundos, perdidos. Lavou o rosto, saiu. Marcos a levou até a porta da escola, parou um táxi a colocou lá dentro. Ele vinha sendo sua mão salvadora desde aquela tarde que acordou deitada no chão da sala, calcinha rasgada ao lado do corpo, peitos à mostra sem entender o que havia acontecido. Ele a encontrou assim. Foi a voz serena que a ajudou a ir voltando aos poucos. A acompanhou em todas as etapas. O táxi estava quase em casa. Ela rezava para chegar logo. Os enjoos estavam voltando.

Enjoos. Vômitos. Água de côco. Enjoos. Vômito. Água de côco. Enjoos. Vômito sono, muito sono. as vísceras reviradas. Nada mais no estômago a por para fora. Só bilis e dor. E a diarréia não parava. Os espamos, a certa altura, eram tão violentos que urina escorria por suas pernas. É uma cena algo escatológica, mas quem disse que não é escatológica a situação de um estupro? A violência não acaba com o gozo doentio do estuprador. A violência persiste a cada olhar, a cada passo, a cada vômito. E pelo visto persistirá por mais 27 dias.

Exausta cochilou sem noção de que horas eram e tendo a clareza que precisava partilhar essa dor. A dor de ter seu corpo violado, a dor de ter seu corpo violentado por aquilo que poderá salvar sua vida: o coquetel. Bendito coquetel que me desmonta, me surra e me salva. Os efeitos do estupro são devastadores na alma de uma mulher. Desmonta por completo a auto-estima e o senso de confiança. Destrói qualquer possibilidade segurança na presença de um homem. Anestesia, desliga.

Adormeceu exausta.

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